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Professora, Jornalista, Relações Públicas e Mestre em Comunicação Social. Apaixonada pela comunicação e pelo imaginário humano e cultural.

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Sunday, November 23, 2008

Herança do preconceito

Por Bruna Silveira








A vida do gaúcho está repleta de informações subliminares e sem lei. Se hoje pedirmos a descrição de um índio à uma criança, ou um adulto sem contato com aldeias indígenas, eles com certeza descreverão indivíduos de pena na cabeça e lança na mão. De corpo pintado, não sabem se comunicar e sua vida é guerrear. Ou então, alguns poderão responder que são seres que vivem a margem de estradas, que incomodam durante os veraneios – porque tentam sobreviver vendendo seus artesanatos de palha – crianças indígena pedindo esmola, ou quem sabe de tribos tomando casas abandonadas ou seqüestrando professores do ensino médio. Momento de parar para uma reflexão: porque essa imagem deturpada? Porque achar que eles não têm direitos? Por que não dizer a verdade sobre a real história do Rio Grande do Sul?



O gaúcho se glorifica pelo seu bom churrasco e chimarrão. Será que entendemos bem? O gaúcho? Sim, o ser superior da parte Sul do país, aquele que não admite, muito menos ensina aos seus filhos de onde originou-se os termos que ouvem na música “churrasco bom chimarrão, fandango trago e mulher...”. Vamos tentar contemporizar. Churrasco é uma herança da cultura indígena, assim como o chimarrão, para dizer o mínimo. Aliás, a palavra gaúcho é atribuída do termo da língua quéchua que significa vagabundo. Sim, linguagem indígena. Além disso, os mais de 20% de termos usados em nossa cultura provém de origem indígena. Afora os termos, podemos atribuir a indumentária, nomenclaturas da fauna, da flora, nomes de cidades, rios e formações geográficas. O poncho e o chiripá já eram vestimentas utilizada pelos índios, explica Ana Elisa de Castro Freitas, bióloga, mestre em Ecologia, Dra. em Antropologia Social, coordenadora do Núcleo de Políticas Públicas para os Povos Indígenas da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana da Prefeitura de Porto Alegre e pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da UFRGS.



As verdades vão mais além do que as crianças aprendem na escola, principalmente no Dia do Índio. O gaúcho, de posse da cultura indígena, misturando isso à aspectos europeus fez sua imagem – um ser híbrido. Em 1535, com a chegada dos europeus ao Estado e o abandono de seus cavalos, na região das Missões, as grandes planícies dos territórios foram sendo povoadas, formando a primeira atração de um modo de vida libertário do campo aberto – terra dos índios dos pampas. “Essa mescla de homens ‘sem rei e sem lei’ era formada em sua base por índios, mestiços, negros, espanhóis e portugueses”, conta a historiadora e consultora em turismo e patrimônio cultural de Santo Ângelo Gladis Pipi. Para ela, não há separação do que é índio ou europeu, bem como não há divisas na herança cultural e genética dos gaúchos de ontem e de hoje. A divisão está somente na cabeça das pessoas.



Diferença ou preconceito? A concepção de cultura cristã dominante enraizou isso e, ao invés dos homens cortarem esse mal pela raiz, eles seguem se enterrando neste abismo profundo entre os seres. Isso tudo reproduz-se em imagens estereotipadas. Gladis levanta uma questão: “quando as múltiplas vozes indígenas serão ouvidas com respeito, sem preconceito e desprezo?”. Uma questão a ser pensada. Não só por historiadores, mas por todos os habitantes do Rio Grande do Sul. O choque de raças, que teve seu ponto alto na Guerra Guaranítica e, que massacrou a vida de milhares de indígenas e de patrimônios culturais, jamais terá recuperação. O que dá para travar nos dias de hoje é sim, uma luta pela igualdade, uma guerra de paz.



“Índio tem direito de estudar, de viver em sociedade, de ter moradia, trabalhar, de consumir”, comenta Gladis. Mesmo ele estando tão presente na vida do Estado, pouco se conhece de suas comunidades, de suas tradições, suas crenças e suas diferenças étnicas. “No Rio Grande do Sul, por exemplo, há mais de 13 mil indígenas” complementa a historiadora.



A dificuldade de vida destes povos nos dias de hoje, provém de uma visão colonial enraizada nas pessoas. Para Ana Elisa, isso contribuiu com o preconceito e impede um diálogo com a sociedade. “Por ter muitas terras naturais em falta, a região Sul inventa uma cultura para se manter e não dialoga com os povos que vivem nas mesmas terras”, acrescenta. Hoje, os índios travam uma guerra secular para superar as perdas e conquistar sua identidade e espaço, explica a pesquisadora. “Para a cultura de um povo, o patamar do diálogo é importante. Os índios continuam produzindo seu artesanato e buscando sítios indefinidos na sociedade. Eles têm direito a locação também. As terras não foram descobertas no ano de 1750, elas foram tomadas”, explica.



Se faz urgente e necessário compreender estas diferenças. Mais que isso, ir além, aceitar o próximo. “Compreender que os índios abrangem populações muito diferentes entre si, que as sociedades indígenas não se definem somente por homogeneidade ou oposição aos brancos. É primordial para qualquer ação de cunho político, social, comercial ou religioso”, contemporiza Gladis.



Na realidade, podemos ver que, desde a chegada dos primeiros colonizadores no nosso (?) Estado, até os dias de hoje, há uma luta constante contra o índio e, quem pensa que está ganhando, é quem se acha civilizado, que fecha o vidro na sinaleira, quem mal atende uma criança e seu artesanato no litoral gaúcho ou quem simplesmente vira a cara ao ir passear e fazer compras em Tramandaí e se depara com um acampamento na estrada.



Esses mesmos civilizados, que levam diariamente seus filhos à escola e deveriam começar aí a mostrar o que é humanidade, respeito com o próximo e o que de valor podemos ver no antepassado da sociedade. Por outro lado, cabe às escolas mostrarem a história real – chega de contos de fada - e não fazer as crianças desenharem seres de pele vermelha e penas na cabeça, muito menos ficar batendo a mão na boca em volta de fogueiras de papel celofane – tendo os pais e educadores aplaudindo. É bom pensar na hora de comer o churrasco, cevar a erva mate e usar o poncho nos dias de frio. Há mais frieza no coração humano do que as baixas temperaturas do inverno da região Sul. É dar valor a quem se tem e não se apropriar e endeusar o que não é seu.

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